O panorama da saúde financeira no Brasil revela uma realidade preocupante. Segundo a Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic) da CNC, 77,6% das famílias brasileiras estavam endividadas em abril de 2025. Este cenário alarmante persiste apesar do crescente espaço que o tema da saúde financeira vem ocupando em eventos, painéis e discursos institucionais por todo o país.

Embora “saúde financeira” e “impacto social” tenham se tornado expressões recorrentes em fóruns de inovação e conferências de negócios, existe um paradoxo evidente entre os discursos e as práticas efetivas. As soluções convencionais – como coaching financeiro, educação básica sobre orçamento e acesso ao crédito – continuam sendo as principais ofertas do mercado, sem conseguir resolver os problemas estruturais que afetam milhões de brasileiros.

Este descompasso ocorre porque simplesmente estamos ajustando os mesmos mecanismos de sempre, esperando resultados diferentes. Enquanto isso, a realidade mostra que as pessoas seguem presas em ciclos de endividamento, sem acesso a canais de orientação confiáveis e utilizando produtos financeiros que foram desenhados para quem já possui estabilidade econômica.

Os desafios regionais representam outro obstáculo significativo. Existe uma forte centralização de debates e soluções baseados em modelos internacionais, principalmente norte-americanos, que nem sempre se aplicam à realidade brasileira. A saúde financeira em Salvador, na Bahia, apresenta características e necessidades muito diferentes das encontradas em São Paulo ou Rio de Janeiro, quanto mais se comparadas a Chicago ou Nova York. As particularidades socioeconômicas e culturais de cada região brasileira exigem soluções adaptadas ao contexto local.

Para superar essas limitações, a cocriação com usuários reais surge como caminho promissor. Metodologias de desenvolvimento que envolvam, desde o início, as pessoas mais impactadas por problemas financeiros permitem criar produtos e serviços genuinamente relevantes. Instituições financeiras e fintechs que adotam abordagens de design centrado no usuário têm conseguido resultados mais efetivos, pois suas soluções respondem a necessidades reais e não apenas a pressupostos de mercado.

Um exemplo bem-sucedido é o Banco Maré, fintech que surgiu na Favela da Maré, no Rio de Janeiro, e desenvolveu soluções bancárias específicas para moradores de comunidades, considerando suas particularidades e barreiras de acesso ao sistema financeiro tradicional. O processo de cocriação permitiu criar um sistema que realmente atende às necessidades locais.

A medição de impacto em saúde financeira também precisa evoluir para além dos indicadores tradicionais. Não basta quantificar acessos a produtos financeiros ou número de contas abertas – é necessário avaliar como as soluções afetam a vida das pessoas no longo prazo. Indicadores como redução sustentada do endividamento, aumento da capacidade de poupança, melhoria da qualidade de vida e redução do estresse financeiro oferecem uma visão mais completa sobre o impacto real das iniciativas.

A Plataforma Mapa da Saúde Financeira, iniciativa colaborativa que reúne dados sobre o tema no Brasil, representa um avanço importante nessa direção. A ferramenta permite visualizar indicadores regionalizados e monitorar a evolução da saúde financeira em diferentes contextos, contribuindo para o desenvolvimento de políticas e soluções mais efetivas.

No campo da inovação radical, o Brasil tem mostrado casos inspiradores. O Nubank revolucionou o acesso a serviços bancários ao eliminar burocracias e taxas abusivas, democratizando produtos financeiros para milhões de brasileiros antes excluídos do sistema. A GuiaBolso inovou ao criar uma plataforma que unifica contas bancárias e oferece orientação financeira personalizada. Estas empresas desafiaram lógicas estabelecidas e criaram novos paradigmas de inclusão financeira.

Para o futuro, é essencial fomentar iniciativas que saiam do conforto das soluções tradicionais e apoiem ideias disruptivas, inclusive aquelas que desafiem a lógica de lucro imediato em favor de impacto social sustentável. Incubadoras e aceleradoras com foco em negócios de impacto, como a Artemisia e o Impact Hub, têm papel fundamental nesse processo.

O papel dos trabalhadores do terceiro setor na promoção da saúde financeira também merece destaque. Estes profissionais frequentemente carregam o peso da transformação social, mas enfrentam enorme vulnerabilidade financeira. Organizações como a ASID Brasil e o Instituto Estaleiro Escola, que trabalham com capacitação financeira em comunidades vulneráveis, demonstram como o terceiro setor pode ser agente de mudança, desde que receba o devido suporte e reconhecimento.

A nova geração tem transformado a relação com as finanças através de fenômenos como o “FinTok” – conteúdo financeiro no TikTok – e o “loud budgeting” (orçamento aberto), que envolvem transparência nas discussões sobre finanças pessoais. Estes movimentos refletem uma mudança cultural importante, onde jovens buscam conhecimento financeiro de forma acessível e desmistificada, rejeitando os modelos tradicionais de comunicação das instituições financeiras.

Para as instituições financeiras, comunicar-se efetivamente com o público jovem requer estratégias que valorizem a transparência, a linguagem direta e o propósito social. Bancos e fintechs que conseguem alinhar suas ofertas a valores como sustentabilidade, inclusão e ética têm maior chance de conquistar a confiança desse público exigente e conectado.

Em última análise, a saúde financeira deve ser entendida como uma ferramenta de dignidade e autonomia. Vai muito além de crédito e conta corrente – envolve acesso, autonomia, dignidade e pertencimento. As soluções mais efetivas serão aquelas baseadas em dados e empatia, que considerem as pessoas em sua integralidade e as diversas realidades brasileiras.

O caminho para transformar boas falas em boas práticas passa por escuta ativa, experimentação constante e coragem para repensar o óbvio. Afinal, o verdadeiro impacto social ocorre quando cada pessoa tem garantido seu direito de viver com dignidade, segurança e autonomia financeira – seja no interior do Nordeste, nas periferias das grandes capitais ou nos centros urbanos mais desenvolvidos do país.

Referências:
https://startupi.com.br/saude-financeira-impacto-social/
https://exame.com/invest/onde-investir/como-promover-a-saude-financeira-dos-brasileiros/
https://plataforma.saudefinanceira.org.br/mapa
https://impactanordeste.com.br/blog/educacao-financeira-e-impacto-social-uma-combinacao-poderosa-para-o-futuro/