O boom das Deep Techs no Brasil: como a ciência avançada está transformando a inovação
Quando falamos de inovação no Brasil, geralmente pensamos em startups digitais que desenvolvem aplicativos ou plataformas. Porém, existe um movimento crescente e poderoso ocorrendo nos laboratórios de pesquisa, universidades e centros de inovação por todo o país: as deep techs – empresas baseadas em avanços científicos profundos e tecnologias disruptivas.
Diferentemente das startups tradicionais, as deep techs não buscam apenas otimizar processos existentes, mas criar soluções fundamentalmente novas para os problemas mais desafiadores da humanidade. São empresas nascidas da ciência de ponta, cujo diferencial está no conhecimento científico avançado que aplicam para criar inovações que outros simplesmente não conseguem replicar.
Um novo modelo de inovação com DNA científico
O que diferencia as deep techs das startups convencionais é justamente seu alicerce científico. Enquanto muitas startups desenvolvem modelos de negócio baseados em tecnologias digitais já estabelecidas, as deep techs mergulham nas fronteiras da ciência – seja na manipulação de moléculas, no desenvolvimento de novos materiais ou na criação de algoritmos revolucionários de inteligência artificial.
Esta abordagem traz desafios únicos: ciclos de desenvolvimento mais longos, necessidade de investimentos maiores e uma dependência crucial de talentos altamente especializados. Contudo, o potencial disruptivo e de impacto é proporcionalmente maior.
O mapa das deep techs na América Latina e no Brasil
A América Latina vem se destacando como um terreno fértil para deep techs, com aproximadamente 340 startups desse segmento, movimentando cerca de R$38 bilhões. O Brasil ocupa posição de liderança, abrigando mais de 100 dessas empresas, segundo dados do Laboratório de Inovação do Banco Interamericano de Desenvolvimento (IDB Lab).
Em cidades como São Paulo, Belo Horizonte, Florianópolis e Campinas, ecossistemas de deep techs florescem graças à proximidade com universidades de ponta e centros de pesquisa. Este crescimento reflete tanto o potencial científico brasileiro quanto a crescente maturidade do nosso ecossistema de inovação.
Transformando setores estratégicos com ciência aplicada
As deep techs brasileiras estão revolucionando diversos setores essenciais para o desenvolvimento sustentável do país:
Saúde
Startups como a Phelcom Technologies, de São Carlos (SP), desenvolvem dispositivos portáteis para exames oftalmológicos utilizando inteligência artificial, permitindo diagnósticos remotos de retinopatias em regiões com pouco acesso a especialistas. Já a Onkos Diagnósticos Moleculares, de Ribeirão Preto, utiliza sequenciamento genético avançado para personalizar tratamentos oncológicos.
Agronegócio
O Brasil, potência agrícola mundial, vê nascer deep techs como a Agrosmart, que utiliza sensores IoT e inteligência artificial para otimizar o uso de recursos hídricos e prever condições climáticas. A Promip, de Engenheiro Coelho (SP), desenvolve soluções biológicas avançadas para controle de pragas, reduzindo a dependência de agroquímicos.
Energia e Meio Ambiente
Empresas como a Sunew, de Belo Horizonte, desenvolvem filmes fotovoltaicos orgânicos que transformam qualquer superfície em geradora de energia. A Biolinker, de São Paulo, criou biotecnologias para transformar resíduos industriais em matérias-primas de alto valor.
Tecnologias transversais
Na área de nanotecnologia, empresas como a Nanox, de São Carlos, desenvolvem materiais antimicrobianos para diversas aplicações. No campo da robótica avançada, a Human Robotics, do Rio de Janeiro, cria exoesqueletos para reabilitação de pacientes com mobilidade reduzida.
O caminho do laboratório ao mercado: desafios e oportunidades
Transferir conhecimento científico para o mercado é um processo complexo, especialmente no Brasil. As deep techs enfrentam barreiras significativas:
Capital paciente
Os ciclos de desenvolvimento mais longos das deep techs exigem investidores dispostos a esperar pelo retorno. No Brasil, ainda existe uma escassez de capital de risco direcionado a empreendimentos científicos de alto risco e alto impacto.
Regulação
Muitas deep techs operam em setores altamente regulados, como saúde e biotecnologia. Navegar pelo ambiente regulatório brasileiro é frequentemente um desafio, com processos burocráticos que podem atrasar significativamente a entrada no mercado.
Talentos especializados
A formação de cientistas empreendedores é um gargalo importante. Precisamos de mais profissionais que dominem tanto os aspectos técnicos quanto as habilidades de negócio necessárias para transformar descobertas científicas em empresas viáveis.
Financiamento além do capital tradicional: a nova filantropia
Uma tendência promissora no financiamento de deep techs é o crescente papel da filantropia e dos fundos de impacto. Diferentemente dos investidores tradicionais, estes atores frequentemente priorizam o impacto social e ambiental sobre o retorno financeiro imediato – uma abordagem alinhada com os longos ciclos de desenvolvimento das deep techs.
No Brasil, fundações como Instituto Serrapilheira e Fundação CERTI têm direcionado recursos para apoiar pesquisas científicas com potencial de aplicação. Internacionalmente, organizações como a Breakthrough Energy Ventures, do Bill Gates, têm olhado para o Brasil em busca de soluções climáticas baseadas em ciência.
Esta nova filantropia científica preenche uma lacuna crucial no financiamento inicial, permitindo que as deep techs superem o temido “vale da morte” entre a pesquisa acadêmica e a validação comercial.
Universidades e indústria: uma aliança necessária
As universidades brasileiras são berços naturais de deep techs, concentrando pesquisas de ponta e talentos científicos. No entanto, a transferência desse conhecimento para o mercado ainda enfrenta obstáculos.
Para fortalecer a cultura empreendedora nas instituições de ensino, iniciativas como o Programa PIPE da FAPESP em São Paulo e a Rede de Incubadoras Tecnológicas têm criado pontes entre a academia e o mercado. Universidades como UNICAMP, USP e UFMG têm implementado políticas de inovação mais ágeis, facilitando o licenciamento de tecnologias e a criação de spin-offs acadêmicos.
Parcerias universidade-empresa, como a que existe entre o Centro de Inovação em Biodiversidade e Fármacos da UFSCar e a indústria farmacêutica, demonstram como essa aproximação pode acelerar o desenvolvimento tecnológico e criar soluções com impacto real.
Mulheres na ciência e na tecnologia: diversidade como motor de inovação
Um aspecto fundamental para o fortalecimento do ecossistema de deep techs no Brasil é a maior inclusão de mulheres. Apesar dos avanços recentes, a participação feminina em áreas STEM (Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática) ainda é desproporcional.
Dados da CAPES mostram um crescimento expressivo no número de bolsas de pesquisa para mulheres no Brasil – um aumento de mais de 10% entre 2022 e 2025, passando de 42 mil para 50 mil. Porém, quando olhamos para posições de liderança em deep techs, o cenário ainda revela desigualdades.
Iniciativas como o programa Mulheres na Ciência do Instituto Serrapilheira e o WomenTechmakers, apoiado pelo Google, têm trabalhado para reduzir essa disparidade, oferecendo mentorias, financiamento direcionado e visibilidade para cientistas e empreendedoras.
A experiência internacional mostra que equipes diversas desenvolvem soluções mais inovadoras e abrangentes. Para o Brasil se tornar um hub global de deep techs, precisamos mobilizar 100% dos nossos talentos, independentemente de gênero.
Superando barreiras: rumo a um ecossistema mais robusto
Para que o Brasil se estabeleça como um centro global de deep techs, precisamos superar três grandes desafios:
Regulação inteligente
Um ambiente regulatório que combine segurança com agilidade é essencial. A implementação do Marco Legal da Ciência, Tecnologia e Inovação trouxe avanços, mas ainda há espaço para aprimoramentos, especialmente em setores como biotecnologia e saúde.
Capital paciente
O desenvolvimento de um mercado de capital de risco especializado em deep techs requer incentivos fiscais, fundos de coinvestimento público-privados e educação dos investidores sobre as particularidades destes negócios.
Infraestrutura científica
Laboratórios de ponta, equipamentos avançados e ambientes de prototipagem são custosos, mas essenciais. Iniciativas como o Parque Tecnológico de São José dos Campos e o Porto Digital de Recife demonstram como infraestruturas compartilhadas podem democratizar o acesso a recursos avançados.
Casos de sucesso: inspiração para novos empreendedores
O Brasil já tem histórias inspiradoras de deep techs que superaram os desafios e conquistaram reconhecimento global:
A CiaConnect, de São Paulo, desenvolveu uma tecnologia de diagnóstico rápido de doenças tropicais que está sendo implementada em diversos países. A Biologix, spin-off da USP, criou um biomaterial revolucionário para regeneração óssea que atraiu investimento internacional.
A Nelogica, originada na UFRGS, desenvolveu softwares avançados para o mercado financeiro utilizando inteligência artificial e foi adquirida por uma multinacional.
Estes casos demonstram que, apesar dos desafios, é possível construir deep techs de sucesso a partir do Brasil, combinando ciência de ponta com visão empreendedora.
Construindo um hub brasileiro de deep techs
Para transformar o Brasil em um polo global de deep techs, precisamos de uma estratégia coordenada que envolva:
Políticas públicas alinhadas
Programas como o PIPE/FAPESP em São Paulo e o Tecnova/FINEP nacionalmente têm sido fundamentais para o financiamento inicial de deep techs. Expandir e aprimorar essas iniciativas, com foco em setores estratégicos, pode catalisar o desenvolvimento do ecossistema.
Infraestrutura compartilhada
Centros de inovação setoriais, como o CNPEM em Campinas, oferecem acesso a equipamentos avançados que seriam inacessíveis para startups individuais. Multiplicar estes hubs pelo país democratizaria o acesso à infraestrutura científica.
Formação de talentos
Programas educacionais que combinem excelência científica com mentalidade empreendedora são essenciais para formar os líderes das deep techs do futuro.
O impacto transformador das deep techs brasileiras
As deep techs representam mais que uma oportunidade econômica – são ferramentas poderosas para enfrentar os grandes desafios do Brasil e do mundo. Em um país com enormes desafios sociais e ambientais, as deep techs oferecem soluções baseadas em ciência para problemas como:
- Acesso à saúde em regiões remotas, através de diagnósticos remotos baseados em IA
- Agricultura sustentável em tempos de mudanças climáticas
- Energias renováveis adaptadas à realidade brasileira
- Biofábricas para produção de insumos estratégicos
- Soluções para gestão hídrica e saneamento básico
Ao focar em deep techs, o Brasil pode transformar seus desafios em oportunidades, criando soluções únicas que combinem inovação científica com impacto social e ambiental positivo.
O futuro da inovação brasileira tem DNA científico. Com o fortalecimento do ecossistema de deep techs, o Brasil pode não apenas participar, mas liderar a próxima revolução tecnológica, utilizando ciência avançada para criar um futuro mais próspero e sustentável.
Referências