Criptoativos e a Revolução do Direito Contratual no Brasil: Desafios e Oportunidades para Empresários e Gestores

Os Criptoativos e a Transformação do Direito Contratual no Brasil: Desafios e Perspectivas

O panorama dos criptoativos no Brasil tem apresentado crescimento expressivo nos últimos anos, transformando significativamente o mercado financeiro nacional. Esses ativos digitais, baseados em criptografia e registrados em sistemas descentralizados (blockchain), representam uma nova classe de bens que opera sem intermediação de instituições financeiras tradicionais. No Brasil, a adoção dessas tecnologias tem sido impulsionada tanto por investidores individuais quanto por empresas que buscam modernizar suas operações e reduzir custos de transação.

A blockchain, tecnologia que sustenta os criptoativos, funciona como um livro-razão distribuído onde as transações são validadas por consenso entre os participantes da rede. Esta estrutura elimina o problema do “gasto duplo” e torna as operações praticamente irreversíveis após confirmadas. A relevância para o mercado financeiro brasileiro é evidente: transações mais rápidas, menores taxas e novas possibilidades de negócios que não seriam viáveis nos sistemas tradicionais.

Os smart contracts representam outra inovação significativa no ecossistema jurídico nacional. Estes são contratos codificados em programas de computador que executam automaticamente as obrigações pactuadas quando determinadas condições são atendidas. Como destaca a doutrina especializada, trata-se de “um acordo em formato digital que é auto-executado e auto-implementado”, sem necessidade de intervenção humana para seu cumprimento.

A estrutura técnica dos smart contracts assenta-se sobre a mesma cadeia de blocos (blockchain) dos criptoativos, conferindo-lhes descentralização, segurança criptográfica e imutabilidade. Na prática, esses contratos são armazenados em blocos da rede e executados por validadores que alcançam consenso sobre seu resultado. No Brasil, aplicações práticas já podem ser observadas em diversos setores, como em transações imobiliárias, seguros paramétricos, gestão de direitos autorais e processos administrativos automatizados.

Quanto à natureza jurídica dos criptoativos, o ordenamento brasileiro tende a classificá-los como bens móveis incorpóreos sujeitos a regras similares às de outros ativos digitais. A Lei 14.478/2022 definiu oficialmente “ativo virtual” como “representação digital de valor que pode ser negociada ou transferida por meios eletrônicos e utilizada para pagamentos ou investimento, que não é moeda de curso legal”. Esta definição consolida o entendimento de que não se tratam de moeda nacional, pois não têm curso forçado nem unidade de conta oficial.

A volatilidade dos criptoativos representa um desafio adicional para relações contratuais. Obrigações denominadas em criptomoedas exigem ajustes específicos sobre moeda equivalente, câmbio e flutuação. Embora a liberdade negocial permita usar cripto como objeto contratual (conforme o art. 421 do Código Civil), devem-se considerar riscos atípicos de inadimplemento, como a desvalorização abrupta da criptomoeda antes do cumprimento da obrigação.

A execução automática dos smart contracts versus a possibilidade de revisão judicial cria um paradoxo jurídico relevante. Diferentemente dos contratos tradicionais, onde o inadimplemento pode ser submetido a medidas executivas judiciais, o código de um smart contract se cumpre forçadamente, sem possibilidade de descumprimento. Isto limita a aplicação de princípios como a revisão judicial por onerosidade excessiva (art. 478 do CC) ou a intervenção por equidade.

A inexorabilidade do código – característica intrínseca dos contratos inteligentes – pode colidir com institutos jurídicos consolidados. Como observam especialistas, “por definição, os smart contracts não podem ser levados ao Judiciário” para revisão de cláusulas ou suspensão de efeitos. Isso tem levado ao desenvolvimento do conceito de Lex Cryptographia como uma nova fase do direito para lidar com violações nesse ambiente tecnológico.

As possibilidades de contestação em juízo existem, mas são limitadas e posteriores à execução. Tribunais brasileiros já reconheceram a validade de demandas buscando a reversão de transferências realizadas por smart contracts em casos de fraude, erro ou vício de consentimento. Contudo, a execução já terá ocorrido, e a ação judicial terá natureza indenizatória ou restitutória, não preventiva.

O marco regulatório nacional para criptoativos teve avanço significativo com a Lei 14.478/2022, que estabeleceu definições fundamentais e atribuiu ao Banco Central a supervisão dos Prestadores de Serviços de Ativos Virtuais (PSAVs). O Decreto 11.563/2023 regulamentou aspectos práticos desta supervisão, exigindo das exchanges e demais plataformas de cripto licenciamento específico, práticas robustas de compliance e governança corporativa.

A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) também tem estabelecido diretrizes importantes para o mercado de criptoativos, especialmente quando estes apresentam características de valores mobiliários. Recentes manifestações da autarquia têm esclarecido quais tipos de tokens estão sujeitos à sua regulação, contribuindo para maior segurança jurídica nas operações com esses ativos no mercado brasileiro.

No campo tributário, as obrigações e requisitos de compliance têm evoluído rapidamente. Em janeiro de 2023, a Receita Federal concluiu consulta pública sobre a “Declaração de Criptoativos” (DeCripto), instrumento que atualiza a Instrução Normativa 1.888/2019. A expectativa é que novas normas detalhem quais operações em cripto serão obrigatoriamente informadas ao fisco, equiparando o tratamento tributário desses ganhos ao de outras operações financeiras.

O alinhamento com a Receita Federal é crucial para os contribuintes brasileiros, uma vez que ganhos de capital ou rendimentos auferidos por meio de contratos envolvendo criptoativos devem ser tributados conforme a legislação vigente. A omissão dessas informações pode resultar em autuações fiscais significativas, como já ocorreu em diversos casos noticiados pela imprensa especializada.

A jurisprudência brasileira sobre criptoativos tem avançado significativamente nos últimos anos. Em decisão relevante, o Superior Tribunal de Justiça já reconheceu a possibilidade de penhora de criptomoedas em execução, sob o argumento de que “são ativos financeiros passíveis de tributação” e “têm valor econômico”. Esta decisão estabelece importante precedente ao reconhecer que, embora não sejam dinheiro oficial, criptoativos podem responder por dívidas conforme o art. 789 do Código de Processo Civil.

A competência da Justiça Federal para casos envolvendo criptoativos foi afirmada pelo STJ no HC 328.621, ao considerar que a oferta pública de investimento em Bitcoins sem registro na CVM configura crime contra o sistema financeiro nacional. Este precedente indica que o Judiciário brasileiro equipara algumas operações em cripto às operações com valores mobiliários tradicionais, sujeitando-as ao mesmo regime jurídico.

Outros precedentes relevantes incluem decisões estaduais que invalidaram contratos simulados em cripto que mascaravam operações ilícitas, bem como decisões reconhecendo a reversão de transferências e aplicando a Teoria da Asserção para demandas de rescindibilidade contratual. Embora ainda não exista jurisprudência uniforme, os tribunais têm consistentemente reconhecido os criptoativos como bens patrimoniais que podem ser objeto de relações jurídicas válidas.

O conceito de Lex Cryptographia representa um avanço doutrinário significativo no debate sobre criptoativos e smart contracts. Esta expressão sintetiza a ideia de um novo conjunto de normas específicas para o ambiente digital baseado em criptografia, semelhante ao desenvolvimento histórico da Lex Mercatoria. Doutrinadores brasileiros têm discutido intensamente a natureza jurídica dos smart contracts, debatendo se são contratos típicos ou apenas instrumentos de execução pré-contratual.

O Projeto de Lei 4/2023, que propõe atualizar o Código Civil brasileiro, prevê seção específica sobre contratos eletrônicos e possivelmente smart contracts, demonstrando a preocupação do legislador em dar respaldo legal expresso a essas formas contratuais digitais. Esse movimento reflete o reconhecimento da necessidade de adaptar a teoria contratual brasileira às realidades tecnológicas emergentes.

As tendências internacionais, especialmente o regulamento europeu MiCA (Markets in Crypto-Assets), têm influenciado o desenvolvimento regulatório no Brasil. A harmonização regulatória é crucial para evitar arbitragem jurisdicional e garantir a cooperação efetiva entre autoridades de diferentes países. O sandbox regulatório, implementado por diversas jurisdições, tem sido um mecanismo eficaz para testar inovações em ambiente controlado antes de sua incorporação definitiva ao ordenamento jurídico.

A cooperação judiciária transnacional também tem se mostrado essencial, especialmente em casos de fraudes e crimes envolvendo criptoativos. O caráter transfronteiriço dessas operações exige coordenação entre autoridades de diferentes países para investigação e persecução eficazes. O Brasil tem firmado acordos de cooperação com diversos países e participado de fóruns internacionais sobre o tema.

No que tange à segurança e governança, as exchanges brasileiras têm implementado cada vez mais boas práticas para proteger seus usuários. Medidas como autenticação de dois fatores, cold storage (armazenamento offline) de criptoativos e seguros contra hackers são algumas das estratégias adotadas. A responsabilidade civil objetiva das exchanges por falhas de segurança tem sido reconhecida por tribunais brasileiros, com fundamento na teoria do risco da atividade.

A proteção do consumidor nas operações com criptoativos permanece um desafio significativo. Muitos usuários não possuem conhecimento técnico suficiente sobre essas tecnologias, o que pode enquadrar suas relações com plataformas de cripto no âmbito do Código de Defesa do Consumidor. Decisões recentes têm aplicado a responsabilidade objetiva das exchanges em casos de falhas técnicas que resultaram em prejuízos aos usuários.

Os direitos do usuário de serviços de criptoativos incluem informação clara e adequada sobre riscos, proteção contra práticas abusivas e possibilidade de arrependimento em determinadas circunstâncias. A nova regulação do Banco Central já exige que as plataformas operem de forma “segura, transparente e rastreável”, o que reforça as obrigações dessas entidades perante seus clientes.

O futuro da integração dos criptoativos e smart contracts ao ordenamento jurídico brasileiro dependerá da evolução contínua da regulação e da jurisprudência. O caminho mais provável é de gradualismo estruturado: aperfeiçoamento das normas existentes, criação de dispositivos específicos e diálogo intenso entre setores público e privado. O objetivo central será equilibrar inovação tecnológica e segurança jurídica, permitindo que criptoativos e smart contracts sejam utilizados de forma legítima e benéfica para a economia brasileira.

Referências

  1. https://cfc.org.br/noticias/artigo-criptoativos-e-transformacao-do-direito-contratual/

  2. https://jus.com.br/artigos/100323/criptomoedas-no-direito-contratual-desafios-e-perspectivas-a-luz-do-principio-da-boa-fe

  3. https://www.conjur.com.br/2023-mar-24/smart-contracts-desafios-oportunidades-ordenamento-juridico

  4. https://portal.fgv.br/artigos/criptoativos-brasil-panorama-regulatorio-e-desafios

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