A cabotagem aérea no Nordeste e Amazônia: uma nova era para a conectividade regional
O Brasil enfrenta um desafio histórico na integração de suas regiões mais remotas através do transporte aéreo. Atualmente, o governo federal avalia uma proposta que pode transformar significativamente a conectividade aérea no Nordeste e na Amazônia Legal: a liberação de voos domésticos para companhias estrangeiras nestas regiões, alterando uma restrição que perdura há décadas no Código Brasileiro de Aeronáutica.
Esta medida, também conhecida como “cabotagem aérea”, representa uma quebra de paradigma no setor aeronáutico brasileiro, que tradicionalmente reserva os voos domésticos exclusivamente às empresas nacionais. Mas qual seria o real impacto desta mudança para as economias locais e para o turismo nestas regiões? Vamos analisar os principais aspectos desta proposta.
O Código Brasileiro de Aeronáutica, em vigor desde 1986, estabelece que apenas empresas brasileiras podem operar voos domésticos no país. Esta limitação, embora proteja o mercado nacional, cria significativas lacunas de conectividade em regiões como o Nordeste brasileiro e a Amazônia Legal, onde diversas localidades permanecem com atendimento aéreo insuficiente ou inexistente.
No caso específico do Nordeste, a região enfrenta uma realidade contraditória: enquanto capitais como Recife, Salvador e Fortaleza possuem boa conexão com os grandes centros do Sul e Sudeste, as cidades médias e destinos turísticos do interior sofrem com escassez de voos regulares. Dados recentes mostram que apenas 15% dos municípios nordestinos com potencial turístico possuem serviço aéreo regular, prejudicando o desenvolvimento econômico local.
Na Amazônia Legal, o cenário é ainda mais desafiador. Com suas dimensões continentais e dificuldades de acesso terrestre, o transporte aéreo torna-se essencial. Contudo, apenas 3% dos municípios da região são atendidos por voos comerciais regulares. Em estados como Acre, Roraima e Amapá, muitas vezes há apenas uma rota aérea comercial ligando a capital ao restante do país, limitando severamente o desenvolvimento regional.
As companhias aéreas brasileiras frequentemente justificam essa baixa cobertura pela inviabilidade econômica dessas rotas. Com custos operacionais elevados e demanda sazonal, muitas dessas conexões não atingem a rentabilidade mínima exigida pelos modelos de negócio das empresas nacionais. Este gap entre demanda social e viabilidade comercial abre espaço para a discussão sobre a entrada de novas operadoras no mercado.
Experiências internacionais demonstram que a abertura do mercado doméstico para companhias estrangeiras pode gerar resultados positivos. Na União Europeia, onde a cabotagem aérea é permitida entre os países-membros desde 1997, houve uma expansão significativa nas conexões regionais e uma redução média de 30% nos preços das passagens. No Chile, a liberalização levou ao aumento de 15% na quantidade de cidades atendidas por voos regulares em apenas cinco anos.
No caso brasileiro, estudos preliminares indicam que a liberação da cabotagem aérea para estrangeiras no Nordeste poderia resultar em uma redução média de 20% a 25% nos preços das passagens para destinos turísticos da região. Para a Amazônia, além da possível redução de preços, o principal benefício seria o aumento na frequência de voos e a criação de novas rotas, possibilitando maior integração regional.
O impacto nos preços ocorreria principalmente devido à introdução de novos modelos de negócio. Empresas latino-americanas como a chilena JetSmart e a colombiana Viva Air operam com estruturas de custo mais enxutas em comparação às companhias brasileiras tradicionais e poderiam trazer seu modelo de baixo custo para rotas atualmente subatendidas.
No entanto, as companhias aéreas nacionais posicionam-se de forma cautelosa diante desta possibilidade. A Associação Brasileira das Empresas Aéreas (ABEAR) argumenta que a cabotagem estrangeira poderia criar uma competição desigual, já que as empresas brasileiras enfrentam uma das mais altas cargas tributárias do mundo no setor aéreo e custos elevados de combustível, enquanto as estrangeiras manteriam suas bases operacionais em países com estruturas de custo mais favoráveis.
Por outro lado, defensores da medida argumentam que a abertura seria benéfica até mesmo para as empresas nacionais, que poderiam focar suas operações em rotas mais rentáveis, enquanto as estrangeiras atenderiam nichos específicos onde possuem vantagens competitivas.
Para viabilizar a operação de empresas estrangeiras em rotas domésticas, seria necessário estabelecer requisitos técnicos e operacionais claros. Entre eles estariam: a certificação pela ANAC (Agência Nacional de Aviação Civil), contratação de percentual mínimo de tripulantes brasileiros, submissão às regras de direitos do consumidor vigentes no Brasil e manutenção de bases operacionais nas regiões atendidas.
As perspectivas econômicas da ampliação da conectividade aérea são promissoras. Estima-se que cada novo voo regular semanal adicione cerca de R$ 150 mil à economia local em destinos turísticos do Nordeste. Na Amazônia, o impacto vai além do turismo, facilitando negócios, acesso à saúde e integração regional. Em cidades como Santarém (PA), Parintins (AM) e Porto Velho (RO), o aumento da conectividade aérea poderia impulsionar setores como o biocomércio sustentável e o turismo ecológico.
Um estudo recente da Fundação Getúlio Vargas aponta que a limitação do modelo atual não se deve apenas às restrições legais, mas também à concentração do mercado aéreo brasileiro. Com apenas três grandes companhias dominando mais de 95% do mercado doméstico, há poucos incentivos para a exploração de novas rotas e modelos de negócio.
Além da cabotagem aérea, especialistas defendem que um plano nacional de conectividade aérea mais abrangente é necessário. Este plano incluiria incentivos fiscais temporários para novas rotas, investimentos em infraestrutura aeroportuária regional e redução da carga tributária sobre o querosene de aviação, que no Brasil custa em média 40% mais que a média internacional.
Do ponto de vista da viabilidade financeira, análises de mercado identificaram ao menos 30 rotas no Nordeste e 15 na Amazônia Legal com potencial de lucratividade para companhias estrangeiras, especialmente aquelas especializadas em operações regionais ou com modelo de baixo custo. Essas rotas tipicamente conectam destinos turísticos ou polos econômicos emergentes que ainda não possuem volume suficiente para atrair as grandes companhias nacionais.
O diferencial competitivo que empresas estrangeiras poderiam trazer ao mercado brasileiro vai além dos preços. Companhias regionais caribenhas e centro-americanas, por exemplo, desenvolveram expertise em operar em destinos com demanda sazonal e infraestrutura limitada, características comuns em muitas localidades do Nordeste brasileiro. Já companhias andinas possuem experiência em operações na região amazônica de seus países, com conhecimento específico sobre os desafios logísticos e climáticos semelhantes aos da Amazônia brasileira.
Para garantir o sucesso da iniciativa, medidas complementares seriam necessárias. Entre elas, destacam-se a modernização dos aeroportos regionais, a revisão da política de slots (horários de pouso e decolagem) nos aeroportos principais para garantir conexões eficientes, e o desenvolvimento de programas de capacitação de mão de obra local para atender à crescente demanda por profissionais do setor.
A liberação da cabotagem aérea para estrangeiras no Nordeste e na Amazônia representa uma oportunidade singular de transformar o panorama da aviação regional no Brasil. Se implementada com o equilíbrio adequado entre abertura de mercado e proteção dos interesses nacionais, esta medida pode ser o catalisador de uma nova era de conectividade para regiões historicamente isoladas do país.
O debate sobre este tema transcende questões puramente regulatórias ou empresariais — trata-se de uma discussão sobre integração nacional, desenvolvimento regional e redução de desigualdades. Em um país com dimensões continentais como o Brasil, o acesso ao transporte aéreo não é apenas uma questão de mercado, mas um direito que deve ser estendido a todos os brasileiros, independentemente de onde vivam.
Referências:
https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/governo-avalia-liberar-voos-por-aereas-estrangeiras-no-nordeste-e-amazonia/
https://www.camara.leg.br/noticias/972264-projeto-permite-que-empresas-aereas-estrangeiras-operem-voos-domesticos-na-amazonia-legal/
https://valor.globo.com/empresas/noticia/2023/11/24/governo-estuda-liberar-voos-de-companhias-estrangeiras-para-norte-e-nordeste.ghtml
https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2023/12/15/projeto-permite-a-companhias-estrangeiras-operarem-voos-domesticos-na-amazonia