Desafios e Impactos do Trabalho Intermitente no Setor Supermercadista Brasileiro: Um Olhar Crítico sobre Condições Laborais e Renda dos Trabalhadores

O cenário do trabalho intermitente no Brasil vem ganhando espaço especialmente no setor supermercadista, levantando importantes discussões sobre as condições laborais. Em cidades como Nova Iguaçu, na região metropolitana do Rio de Janeiro, supermercados oferecem vagas de operador de caixa com remuneração em torno de R$ 1.600, exigindo que o colaborador acumule múltiplas funções além do registro de produtos.

A realidade financeira desses trabalhadores, no entanto, revela-se desafiadora. Após os descontos obrigatórios, o salário líquido mal cobre as despesas básicas mensais. Em cidades brasileiras de médio porte, o aluguel de um imóvel simples dificilmente é encontrado por menos de R$ 900. Somando-se a cesta básica, cujo valor médio chega a R$ 432 segundo recentes pesquisas, e as contas de serviços essenciais como luz (R$ 100 a R$ 200) e água, praticamente não sobra margem para outros gastos, como transporte, saúde ou educação.

Essa matemática da sobrevivência torna-se ainda mais complexa no regime de trabalho intermitente, modalidade que ganhou força após a reforma trabalhista de 2017 e teve sua constitucionalidade confirmada pelo Supremo Tribunal Federal em 2024. Nesse modelo, o trabalhador é convocado conforme a necessidade do empregador, recebendo apenas pelas horas efetivamente trabalhadas, sem garantia de jornada mínima ou remuneração fixa mensal.

O funcionamento desses contratos apresenta particularidades que merecem atenção. O trabalhador fica à disposição, aguardando ser chamado, e quando convocado, recebe proporcionalmente ao tempo trabalhado, incluindo férias e 13º salário fracionados. Na prática, isso significa que em meses de baixa demanda no comércio, o funcionário pode receber valores muito abaixo do necessário para sua subsistência.

Esta modalidade contratual apresenta riscos significativos para os trabalhadores. A imprevisibilidade da renda mensal impede o planejamento financeiro básico, dificultando compromissos como financiamentos, aluguel e até mesmo a organização do orçamento familiar. Além disso, a intermitência afeta diretamente o acesso à seguridade social, já que a contribuição previdenciária também se torna irregular e proporcional.

Para receber benefícios como auxílio-doença ou aposentadoria, o trabalhador precisa cumprir carências mínimas de contribuição, o que se torna um desafio quando os períodos de trabalho são esporádicos. Em muitos casos, mesmo trabalhando regularmente sob regime intermitente, o colaborador não consegue acumular contribuições suficientes para acessar benefícios básicos, criando uma desproteção social de longo prazo.

Outro aspecto preocupante no setor supermercadista é a predominância da escala 6×1 (seis dias de trabalho para um de descanso), que impacta significativamente a saúde dos trabalhadores. Pesquisadores e profissionais de saúde ocupacional têm documentado o crescente adoecimento físico e mental entre funcionários desse setor. Problemas como lesões por esforço repetitivo, dores lombares crônicas e transtornos psicológicos são cada vez mais comuns.

Estudos recentes apontam para o aumento do consumo de medicamentos ansiolíticos e antidepressivos entre trabalhadores do setor, evidenciando o custo humano dessas rotinas extenuantes. A sobrecarga física, somada à pressão por produtividade e à insegurança financeira, cria um ambiente propício ao desenvolvimento de condições crônicas de saúde, que acabam por reduzir ainda mais a capacidade laboral a longo prazo.

O debate sobre flexibilização versus precarização do trabalho divide opiniões. De um lado, representantes empresariais defendem que os contratos intermitentes respondem às necessidades de um mercado cada vez mais dinâmico e às preferências de jovens trabalhadores que buscam horários flexíveis. Argumentam que o modelo permite ajustes em períodos de sazonalidade e maior eficiência na gestão de pessoal.

Por outro lado, especialistas em economia do trabalho e direito trabalhista apontam que, na prática, a flexibilização tem se traduzido em precarização. A transferência do risco econômico da atividade para o trabalhador, a redução de direitos consolidados e a instabilidade financeira representam retrocessos nas condições laborais. Psicólogos organizacionais também alertam para os efeitos negativos da insegurança constante sobre a saúde mental e o bem-estar social.

É importante contextualizar essas mudanças diante da realidade do setor supermercadista brasileiro, que apresenta crescimento constante mesmo em períodos de crise econômica. Segundo dados da Associação Brasileira de Supermercados, o setor tem registrado expansão de faturamento e abertura de novas lojas em diversas regiões do país, demonstrando capacidade financeira para absorver possíveis mudanças nas relações trabalhistas sem comprometer sua viabilidade econômica.

Diante desse cenário, sindicatos e organizações de trabalhadores propõem alternativas à precarização. Entre as principais propostas estão o fim da escala 6×1, substituindo-a por modelos como 5×2 ou 4×3, sem redução salarial; a criação de pisos remuneratórios regionalizados que considerem o custo de vida local; e a implementação de limites mínimos de horas mensais garantidas mesmo em contratos intermitentes, assegurando previsibilidade financeira básica.

Alguns sindicatos também defendem a criação de mecanismos de transição gradual de contratos intermitentes para contratos regulares após determinado período, incentivando a estabilização das relações de trabalho. Argumentam que o setor supermercadista, com suas margens de lucro e crescimento consistente, tem plenas condições de implementar melhorias nas condições laborais sem comprometer sua competitividade.

A juventude trabalhadora, frequentemente apontada como público-alvo ideal para contratos flexíveis, enfrenta um descompasso entre o discurso da flexibilidade e a realidade econômica. Enquanto o mercado valoriza a adaptabilidade e a disponibilidade constante, jovens trabalhadores relatam dificuldades para conciliar estudos, desenvolvimento profissional e estabilidade financeira mínima para construção de projetos de vida.

O apelo da flexibilidade, quando confrontado com a impossibilidade de pagar contas básicas ou planejar o futuro, perde força entre os jovens. Pesquisas recentes com trabalhadores de 18 a 29 anos mostram que a maioria preferiria contratos tradicionais com jornada fixa e remuneração previsível, contradizendo o argumento de que a intermitência atenderia às aspirações dessa geração.

As consequências socioeconômicas da ampliação do trabalho intermitente no Brasil vão além do impacto individual sobre os trabalhadores. A redução da capacidade de consumo de uma parcela significativa da população afeta o mercado interno; a instabilidade financeira compromete o planejamento familiar e o acesso à moradia; e a sobrecarga do sistema público de saúde aumenta com o crescimento de problemas físicos e psicológicos relacionados ao trabalho.

Além disso, a fragilização da proteção previdenciária pode representar, a longo prazo, um contingente maior de idosos sem acesso à aposentadoria adequada, aumentando a pressão sobre políticas assistenciais e sistemas de proteção social. Economistas alertam que a precarização não representa modernização, mas sim um retrocesso que pode comprometer o desenvolvimento socioeconômico sustentável.

O enfrentamento desses desafios exige uma abordagem equilibrada, que reconheça as necessidades legítimas de adaptação do mercado de trabalho às novas realidades econômicas, mas que não abra mão de patamares mínimos de proteção social e dignidade laboral. O diálogo entre trabalhadores, empregadores e poder público mostra-se fundamental para construir alternativas que conciliem eficiência econômica e trabalho decente.

A experiência de países que conseguiram modernizar suas legislações trabalhistas sem precarizar direitos fundamentais pode oferecer importantes lições para o Brasil. Modelos que combinam flexibilidade com segurança, garantindo proteção social adequada mesmo em formas não tradicionais de trabalho, apresentam resultados promissores tanto em termos econômicos quanto sociais.

Referências:

https://www.contadores.cnt.br/noticias/empresariais/2025/05/21/contratos-de-trabalho-por-hora-em-supermercados-aumentam-precarizacao.html

https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2024-11/trabalho-intermitente-cresce-flexibilizacao-ou-precarizacao

https://brasil.elpais.com/brasil/2023-10-18/reforma-trabalhista-intermitente-amplia-uberizacao-do-emprego.html

https://valor.globo.com/brasil/noticia/2024/11/10/trabalho-intermitente-cresce-mas-ainda-enfrenta-resistencia.ghtml

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