Do Terreiro ao Mercado: Transformando Saberes Ancestrais em Negócios Sustentáveis

O empreendedorismo baseado em conhecimentos tradicionais tem se mostrado um caminho promissor para quem deseja unir propósito e rentabilidade. Nos últimos anos, especialmente em Salvador e outras cidades com forte herança cultural afro-brasileira, iniciativas que transformam saberes ancestrais em negócios têm criado novas oportunidades econômicas enquanto preservam tradições centenárias.

A Trajetória de Érika Santos: Ancestralidade que Vira Negócio

Érika Santos personifica essa tendência ao unir sua experiência como yalorixá (sacerdotisa de religiões de matriz africana) e psicóloga para criar uma marca de moda ancestral. Com um investimento inicial de apenas R$ 2 mil, ela desenvolveu um negócio que transforma as tradicionais roupas de terreiro em peças de moda que carregam significado cultural e espiritual.

“O conhecimento ancestral que herdei das minhas mais velhas não é apenas uma tradição a ser preservada, mas também um potencial de negócio a ser explorado com respeito e autenticidade”, compartilha Érika, que atende clientes principalmente em Salvador e região metropolitana.

Começando com Pouco, Crescendo com Estratégia

Iniciar um negócio de moda étnica não exige necessariamente grandes investimentos iniciais. No caso de Érika, os R$ 2 mil iniciais foram direcionados à compra de tecidos, aviamentos e à criação das primeiras peças-piloto. A estratégia foi clara: começar com um catálogo reduzido de produtos de alta qualidade e expandir gradualmente conforme a demanda.

A empresária optou por trabalhar inicialmente com sistema de produção sob demanda, minimizando os custos com estoque e maximizando o capital de giro. Essa abordagem tem sido adotada por diversos empreendedores de moda étnica em regiões como Rio de Janeiro, São Paulo e Recife, criando um movimento de valorização da estética afro-brasileira que transcende fronteiras geográficas.

Fortalecendo Laços Comunitários: O Trabalho Colaborativo

Um diferencial do negócio de Érika é o modelo colaborativo. Em parceria com sua mãe e mulheres de terreiro, ela estabeleceu uma rede de produção que distribui o trabalho e a renda. As colaboradoras contribuem com suas habilidades em costura, bordado e acabamento, muitas vezes desenvolvidas no próprio contexto religioso.

“Este não é apenas o meu negócio, é um projeto coletivo que fortalece nossa comunidade”, explica Érika. A produção colaborativa permite não apenas ampliar a capacidade produtiva, mas também preservar e transmitir técnicas tradicionais entre gerações.

Em cidades como Salvador, Cachoeira e Santo Amaro na Bahia, esse modelo colaborativo tem se tornado uma referência para outros empreendimentos que buscam impacto social positivo aliado à sustentabilidade financeira.

Moda como Ferramenta de Preservação Cultural

A moda afro-brasileira vai muito além da estética. Cada estampa, cada corte, cada amarração carrega significados que remontam a tradições seculares. Ao incorporar elementos dos trajes tradicionais de terreiro em peças contemporâneas, empreendedores como Érika transformam a moda em um poderoso veículo de preservação e difusão cultural.

Os turbantes, as saias rodadas e as batas que antes eram restritos aos espaços religiosos ganham as ruas, eventos culturais e até ambientes corporativos, promovendo visibilidade e respeito à cultura afro-brasileira. Para muitos clientes, principalmente em regiões com forte presença da cultura negra como Salvador, Recife e Rio de Janeiro, adquirir essas peças representa uma forma de conexão com suas próprias raízes.

Mercado em Expansão: Oportunidades para Produtos com Identidade Cultural

O mercado para produtos que valorizam a ancestralidade e identidade cultural tem crescido consistentemente nos últimos anos. Segundo dados do Sebrae, negócios baseados em saberes tradicionais têm apresentado crescimento acima da média do setor de moda, especialmente em regiões metropolitanas do Nordeste e Sudeste.

“Existe uma demanda crescente por produtos que contam histórias e carregam significados”, observa Érika. “As pessoas buscam conexão, autenticidade e representatividade nos produtos que consomem.”

Em Salvador, por exemplo, o turismo cultural tem impulsionado as vendas de produtos ligados à ancestralidade africana, criando oportunidades para empreendedores locais que desenvolvem produtos autênticos e de qualidade.

Desafios e Soluções para Empreendedores de Saberes Tradicionais

Empreender a partir de conhecimentos ancestrais apresenta desafios particulares. Entre eles, destacam-se:

  • A necessidade de equilibrar inovação e tradição, adaptando técnicas sem descaracterizá-las;
  • O acesso limitado a crédito e a inexistência de linhas específicas para negócios tradicionais;
  • A sazonalidade da demanda, especialmente em regiões turísticas;
  • O reconhecimento da propriedade intelectual coletiva.

Para superar esses obstáculos, empreendedores como Érika têm desenvolvido soluções criativas, como:

  • Formação de redes colaborativas que compartilham recursos e conhecimentos;
  • Diversificação de produtos para atender diferentes públicos e ocasiões;
  • Uso estratégico de mídias sociais para educar consumidores sobre o valor cultural dos produtos;
  • Participação em feiras e eventos culturais para ampliar a visibilidade e as vendas.

Estruturando um Negócio com Propósito e Viabilidade

Unir propósito social e viabilidade econômica exige planejamento estratégico. No caso do empreendimento de Érika, a estruturação do negócio incluiu:

  1. Definição clara do propósito e valores da marca, centrados na valorização e preservação da cultura afro-brasileira;
  2. Identificação do público-alvo: pessoas com interesse em moda étnica, cultura afro-brasileira e produtos com significado;
  3. Desenvolvimento de produtos que atendem diferentes faixas de preço, tornando a marca acessível a diversos públicos;
  4. Reinvestimento constante dos lucros para fortalecer a capacidade produtiva;
  5. Documentação e sistematização dos processos produtivos tradicionais.

Esta abordagem tem servido de inspiração para empreendedores em diversas cidades brasileiras, especialmente em regiões com forte herança cultural, como o Recôncavo Baiano, o Maracatu pernambucano e as comunidades quilombolas em todo o país.

Estratégias de Divulgação e Comercialização para Marcas Ancestrais

Para marcas de moda étnica e ancestral, a divulgação e comercialização apresentam particularidades. Érika adotou uma estratégia multicanal que inclui:

  • Presença ativa em redes sociais, com conteúdo educativo sobre a origem e significado dos produtos;
  • Participação em feiras culturais e eventos de moda afro em Salvador e outras capitais;
  • Parcerias com influenciadores e personalidades ligadas à cultura afro-brasileira;
  • Venda direta em ateliê próprio e sistema de vendas online;
  • Marketing de relacionamento, com ênfase na história por trás de cada peça.

A abordagem digital tem sido fundamental para alcançar clientes além das fronteiras locais, permitindo que pessoas de São Paulo, Rio de Janeiro e até do exterior tenham acesso às criações baseadas nos saberes tradicionais baianos.

Impacto Social: Fortalecendo Comunidades Através do Empreendedorismo

O empreendedorismo baseado em saberes ancestrais vai além da geração de renda individual. No caso da marca criada por Érika, o impacto social inclui:

  • Empoderamento feminino, ao criar oportunidades econômicas para mulheres de terreiro;
  • Valorização e reconhecimento de conhecimentos tradicionalmente marginalizados;
  • Preservação e transmissão de técnicas artesanais entre gerações;
  • Fortalecimento da autoestima e identidade cultural da comunidade.

Em Salvador e outras cidades com forte presença de comunidades tradicionais, iniciativas como esta têm demonstrado que é possível criar modelos de negócio que respeitam e fortalecem os laços comunitários enquanto geram prosperidade econômica.

A trajetória de Érika Santos e de outras empreendedoras da ancestralidade mostra que os saberes tradicionais podem ser a base para negócios inovadores e sustentáveis. Ao transformar conhecimentos ancestrais em produtos desejáveis e relevantes para o mercado contemporâneo, esses empreendimentos não apenas preservam o patrimônio cultural brasileiro, mas também criam novos caminhos para o desenvolvimento econômico inclusivo e culturalmente responsável.

Referências

Globoplay. Com R$ 2 mil e saber ancestral, mulher transforma roupas de terreiro em negócio. https://globoplay.globo.com/v/13698831/

Agência Sebrae de Notícias. Empreendedoras da ancestralidade: Negócios de mulheres resgatam saberes originários e impulsionam renda. https://agenciasebrae.com.br/inovacao/empreendedoras-da-ancestralidade-negocios-de-mulheres-resgatam-saberes-originarios-e-impulsionam-renda/

El País Brasil. Moda que Refaz: A ancestralidade como ferramenta de resistência e transformação. https://brasil.elpais.com/estilo/2023-05-19/moda-que-refaz-a-ancestralidade-como-ferramenta-de-resistencia-e-transformacao.html

Alma Preta. Quilombo do Rosário promove oficina de moda afro para jovens da comunidade. https://almapreta.com/editorias/comunidades/quilombo-do-rosario-promove-oficina-de-moda-afro-para-jovens-da-comunidade