O cenário migratório no Brasil e as oportunidades em tecnologia para refugiadas
Pela primeira vez desde 1960, o número de estrangeiros no Brasil voltou a crescer significativamente. Dados recentes do IBGE revelam um salto expressivo na população imigrante, que passou de 600 mil em 2010 para mais de 1 milhão em 2022. Quase metade desses imigrantes são mulheres, conforme aponta a ACNUR, com concentração mais elevada em São Paulo, Santa Catarina, Roraima e Amazonas.
Diante desse contexto, iniciativas de integração socioeconômica para a população refugiada ganham importância fundamental, especialmente para as mulheres, que frequentemente enfrentam desafios adicionais. Na Grande Florianópolis, bem como nas regiões Norte e Nordeste do país, um programa inovador está criando oportunidades concretas de qualificação profissional e inserção no mercado de trabalho.
A Fly Educação, em parceria com a ONU Mulheres, o Instituto Localiza e a Plan International, lançou a primeira edição do programa Mulheres In Tech voltada exclusivamente para mulheres refugiadas. A iniciativa disponibiliza 60 vagas para formação gratuita em programação, atendendo participantes da Grande Florianópolis e das regiões Norte e Nordeste, áreas com crescente presença de mulheres imigrantes.
O mercado de tecnologia da informação nestas regiões tem apresentado demanda consistente por profissionais qualificados, com empresas do polo tecnológico de Florianópolis e dos emergentes centros de inovação no Norte e Nordeste buscando ativamente talentos em desenvolvimento web e programação. Esta realidade representa uma oportunidade significativa para mulheres refugiadas que buscam reconstruir suas vidas profissionais no Brasil.
O programa Mulheres In Tech foi estruturado como resposta a esta conjuntura, reunindo parceiros estratégicos para oferecer não apenas formação técnica, mas também suporte integral às participantes. A ONU Mulheres contribui com sua expertise em igualdade de gênero e empoderamento feminino, o Instituto Localiza oferece suporte à formação profissional, enquanto a Plan International agrega sua experiência em proteção e desenvolvimento de populações vulneráveis.
O diferencial do programa está em sua metodologia STEAM (Ciência, Tecnologia, Engenharia, Artes e Matemática), que integra formação técnico-científica e socioemocional. Esta abordagem reconhece que, para públicos em situação de vulnerabilidade, o desenvolvimento de competências técnicas precisa ser acompanhado pelo fortalecimento de habilidades socioemocionais como resiliência, comunicação e adaptabilidade.
O currículo do curso foca em programação Front-End, abordando temas essenciais como Desenvolvimento Web, HTML e CSS, JavaScript e React. A inclusão de módulos sobre Inteligência Artificial demonstra a preocupação em preparar as participantes para as tendências mais recentes do mercado tecnológico. Essa formação abrangente visa equipar as alunas com conhecimentos relevantes e atualizados, aumentando suas chances de empregabilidade no setor.
“Ao final do curso as alunas irão criar um projeto de conclusão usando as ferramentas e linguagens aprendidas com o intuito de iniciar seu portfólio em sites ou aplicativos e, quando formadas, estarão preparadas para assumir cargos de desenvolvedoras devido à trilha focada no upskilling em tecnologia, abordando assuntos atuais que estão em alta no mercado”, explica Juliana Galliano, gestora de projetos sociais da Fly Educação.
O modelo de ensino foi estruturado para proporcionar flexibilidade e acessibilidade, com aulas predominantemente remotas, combinando atividades síncronas e assíncronas. Essa modalidade facilita a participação de mulheres que podem enfrentar dificuldades de deslocamento ou que precisam conciliar os estudos com responsabilidades familiares e outras atividades.
As sessões de mentoria especializada complementam a formação técnica, oferecendo orientação personalizada e suporte para o desenvolvimento profissional das participantes. Este acompanhamento individualizado é especialmente valioso para pessoas em processo de adaptação a um novo país e mercado de trabalho.
Reconhecendo as múltiplas vulnerabilidades enfrentadas pelas refugiadas, o programa vai além da formação técnica. As participantes recebem auxílio-alimentação durante todo o período do curso, reduzindo barreiras econômicas à participação. Além disso, são oferecidas oficinas de currículo, LinkedIn e empreendedorismo, preparando as alunas para a busca efetiva por oportunidades profissionais.
A iniciativa estabelece conexões diretas com empresas de tecnologia das regiões atendidas, facilitando a inserção das formandas no mercado local. Esta articulação com o setor produtivo é fundamental para traduzir a formação em oportunidades concretas de trabalho, contribuindo para a autossuficiência econômica das refugiadas.
Os resultados esperados do programa vão além da simples capacitação técnica. A expectativa é aumentar significativamente a empregabilidade das participantes, gerando renda e promovendo sua autonomia financeira. O fortalecimento do portfólio profissional das alunas as posiciona competitivamente no mercado de trabalho tecnológico, setor que continua em expansão no Brasil.
“Acreditamos que a formação, alinhada a ações de advocacy e ao olhar atento às necessidades desse público, seja a chave para a mudança estrutural no enfrentamento da diminuição de violência de gênero e mitigação da precarização do trabalho. Além disso, a iniciativa está alinhada aos objetivos da chamada 001/2025 da ONU Mulheres, que visa ampliar o acesso aos direitos e o empoderamento de mulheres refugiadas, migrantes e apátridas no Brasil”, explica Merlina Saudade, venezuelana, agente psicossocial da Fly Educação e parceira da ONU Mulheres.
O alinhamento do programa com políticas públicas é outro aspecto relevante. A iniciativa articula-se com a rede pública de assistência social e contribui para a formulação e implementação de políticas direcionadas a migrantes e refugiados. Esta dimensão amplia o impacto do projeto, potencialmente beneficiando um número maior de pessoas além das participantes diretas.
A escolha das regiões beneficiadas pelo programa não foi aleatória. Grande Florianópolis, Norte e Nordeste do Brasil têm recebido fluxos significativos de migrantes e refugiados nos últimos anos. Em Santa Catarina, especialmente na região da capital, a presença de mulheres refugiadas tem crescido, muitas delas buscando oportunidades no polo tecnológico local. Nas regiões Norte e Nordeste, comunidades de refugiadas venezuelanas, haitianas e de outras nacionalidades formam grupos que necessitam de suporte para integração socioeconômica.
A história da própria Fly Educação reforça a credibilidade e o compromisso da iniciativa. Fundada em 2014 pela venezuelana refugiada Alejandra Yacovodonato, a organização nasceu da experiência pessoal de sua fundadora como imigrante no Brasil. Essa origem confere ao programa uma compreensão profunda das necessidades e desafios enfrentados por mulheres refugiadas.
O programa Mulheres In Tech, criado em 2020 como resposta aos impactos da pandemia, já apresenta resultados expressivos. Mais de 350 mulheres foram formadas em tecnologia, com 71% delas conseguindo emprego após a conclusão do curso. Os dados mostram um crescimento de 20% nas competências socioemocionais das participantes e uma geração de renda estimada em mais de R$ 5 milhões por ano.
Esses números demonstram o potencial transformador da iniciativa, não apenas na vida das mulheres atendidas, mas também em termos de impacto econômico nas comunidades onde estão inseridas. Ao conquistarem autonomia financeira e se integrarem ao mercado de trabalho formal, essas mulheres contribuem para a economia local e servem de inspiração para outras refugiadas.
A combinação de formação técnica de qualidade, desenvolvimento socioemocional, suporte material e conexão com o mercado faz do Mulheres In Tech um modelo promissor de intervenção social. Ao reconhecer e responder às múltiplas dimensões da vulnerabilidade enfrentada pelas refugiadas, o programa oferece uma abordagem holística para a promoção da autonomia e empoderamento dessas mulheres.
Referências
https://startupi.com.br/curso-gratuito-de-programacao-mulheres-refugiadas/